quinta-feira, 24 de novembro de 2011


(Foto: Ana Clara Rebouças, RJ-RJ, 2011)

Nomes, Práticas e Virtudes
Tenho pouco mais de três décadas de vida – graças a Deus – bem vividas e, como qualquer ser humano, levo um punhado de virtudes e outro tanto de defeitos, os quais tento corrigir – e este esforço já seria por si só algo como uma qualidade. Em se tratando da prosa, ou da poesia, sou mais afeita às universalidades do que as particularidades: este texto seria, portanto, uma exceção. Todavia, ao discorrer sobre práticas e virtudes, e destinando a elas nomes e sobrenomes, ainda assim não seria de todo um empenho pessoal: é que nos encontramos nos mais particular detalhe das existências alheias.
Coragem, por exemplo. Todo mundo aprende com alguém ou com algum fato particular como ser um pouco mais do que já fomos outrora. Sobre ela, venho eu aprendendo muito com meus pais, uma grande amiga chamada Cláudia Avellar e com Guimarães Rosa, quem diz tão claro e sabiamente: o correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta; o que ela quer da gente é coragem. Já meus pais e Cláudia ensinam-me na prática, no exercício árduo do dia a dia, a coragem. Venho compreendendo, portanto, que entre o intervalo do abrir os olhos a fechá-los novamente, deve caber em tudo, absolutamente tudo, coragem.
Serenidade. Tenho uma porção de amigos – feliz que sou por isto – e, dentre todos e suas virtudes, há aqueles que têm me ensinado especialmente sobre a serenidade. Exercício difícil, mas sobremaneira necessário este da serenidade porque quase sempre na contramão das urgências nossas cotidianas. Traduzindo concretamente o valor desta virtude – mesmo me ocorrendo um exemplo meio piegas no momento – vale o esforço: como se a serenidade fosse um passeio pausado sobre a vida, e não um trem bala desde onde não se pode nem sequer perceber o que há de bom nos caminhos todos. Marília Prado e Rosa Maria – em seus modos de ser - me ensinaram um pouco sobre isto.
Atenção. Eis uma tarefa difícil esta da atenção porque a vida é mesmo muito densa e rica de detalhes a se atentar. E na contramão de qualquer serenidade, é tudo um tanto turbilhão que é árdua atentar-se muitas das vezes. Para este particular, minhas amigas virginianas, e dentre elas Clarissa, Joyce e Cibelle, ensinam-me a arte da observação atenta, discreta, fina dos pormenores da vida.
Despretensão. E aqui especificamente falo em nome de um estar despretensioso dentro dos minutos vida afora. Algo que tem a ver com leveza de alma. Algo como um estado quase constante de alegrias permanentes: como aquela de se saber vivo. Algo como o bom grado frente às contingências. Desta virtude partilham muitas das minhas queridas amigas, digo, quase a maioria delas; e são tão ricas, tão nobres: a grandeza é mesmo inversamente proporcional às pretensões.
Fé. Sobre a fé venho aprendendo que se trata de algo que prescinde de todo o saber, mas ao mesmo tempo dele se nutre. Isto é o que vale dizer: sabendo – na verdade, supondo saber, como é dado a todo saber – ou mesmo desconhecendo os etéreos e os concretos da vida, todos os caminhos levam, em algum momento, à fé. Neste sentido, Albert Einstein talvez tenha sido dos mais crédulos dos homens. Já a minha avó materna reza o terço diariamente, ao nascer e ao pôr do sol, em sua gratidão sem fim, em sua clemência antes as fragilidades todas, humanidade afora.
Perseverança. Fá tem me ensinado, dentre tantas lindas coisas, que toda a perseverança é pouca para tocar a vastidão do mundo. Ao mesmo tempo, tem-me mostrado, no desvelar dos dias, que o mundo é esplendorosamente denso, todavia curto, haja a vista as distâncias que percorre como um passo valsado. E eu, como sou afeita a sondar espaços e tempos, tenho gostado – venerado – muito das suas lições sobre este “mundo, vasto mundo”.
Ana Clara Rebouças


domingo, 16 de outubro de 2011

(Por Ana Clara Rebouças, RJ– RJ, Janeiro - 2011)


Do amor, seus reveses
Dia desses, eu pensava mais uma vez sobre o amor – tema mais recorrente que este não há – e concluía algumas meias verdades sobre: o amor é um meio caminho à liberdade, por exemplo. Sim porque em se tratando de amor, os absolutos cedem sempre lugar aos relativos, aos meios caminhos. Concluo que amar é mesmo um meio caminho entre a liberdade e uma espécie de cárcere muito cômodo onde se quer tanto estar. Amor é liberdade-custódia.
Pensava também de que se trata – o amor – das coisas mais ambíguas, contraditórias e mais sábias ao mesmo tempo. Encanta-me, por exemplo, perceber que desde as mais românticas criaturas, ultra-românticas, até as das mais céticas e cartesianas (aqueles para quem a vida é nada mais que exatidão, assepsia e burocracia) já se padeceu – ao menos uma vez na vida – de amor alucinando, visceral. Em que pese a sua tendência ao caos, à entropia, e a dês-razão, é das coisas mais geniais que inventaram desde a condição humana, seguro.
Uma última conclusão transitória acerca do amor, tão perturbadora e contraditória quanto lhe convém: “amor só é bom se doer”, como cantava o poeta. Se se trata de amor, não se sai ileso. Jamais. No mais, sobre o amor, seguimos pois com as meias verdades.
Ana Clara Rebouças

quinta-feira, 6 de outubro de 2011


(Águas, por Ana Clara Rebouças, Chapada Diamantina - Ba, 2008)

Dos Encantos
Para Marília Prado
Hoje é o aniversário de uma grande amiga, queridíssima. Amiga daquelas que não mais se consegue conceber a vida sem. Dentre as tantas coisas geniais que me diz, lembrou-me, em meio a uma semana tão torturante de deveres e prazos, que o cotidiano, ainda que pesem as esmagadoras urgências todas, o cotidiano não pode perder seu encanto.
É, minha amigona, concordo que, sob o risco de adoecermos gravemente de alma embrutecida-acinzentada, ou enrijecida tal concretos, o encanto não pode mesmo abandonar o dia a dia. Não pode abandonar – o encanto – as horas, minutos, segundos deste mistério mesmo encantador que é existir. Não pode. A vida é mesmo muito rara para se desencantar.
E assim, portanto, na circunstância do seu aniversário – dia que brindamos a sua existência encantadora nas nossas vidas – retomo com muita alegria os escritos neste blog que, diga-se de passagem, alimenta-se do seu entusiasmo, da sua presença sempre. Muito obrigada, Marylin. Felicidades, minha grande amiga.
Ana Clara Rebouças
O Falso Mendigo

Vinícius de Moraes

Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda
Quero fazer uma poesia.
Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado
E me trazer muito devagarinho.
Não corram, não falem, fechem todas as portas a chave
Quero fazer uma poesia.
Se me telefonarem, só estou para Maria
Se for o Ministro, só recebo amanhã
Se for um trote, me chama depressa
Tenho um tédio enorme da vida.
Diz a Amélia para procurar a "Patética" no rádio
Se houver um grande desastre vem logo contar
Se o aneurisma de dona Ângela arrebentar, me avisa
Tenho um tédio enorme da vida.
Liga para vovó Neném, pede a ela uma idéia bem inocente
Quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar tragam-me logo os jornais da tarde
Se eu dormir, pelo amor de Deus, me acordem
Não quero perder nada na vida.
Fizeram bicos de rouxinol para o meu jantar?
Puseram no lugar meu cachimbo e meus poetas?
Tenho um tédio enorme da vida.
Minha mãe estou com vontade de chorar
Estou com taquicardia, me dá um remédio
Não, antes me deixa morrer, quero morrer, a vida
Já não me diz mais nada
Tenho horror da vida, quero fazer a maior poesia do mundo
Quero morrer imediatamente.
Fala com o Presidente para fecharem todos os cinemas
Não agüento mais ser censor.
Ah, pensa uma coisa, minha mãe, para distrair teu filho
Teu falso, teu miserável, teu sórdido filho
Que estala em força, sacrifício, violência, devotamento
Que podia britar pedra alegremente
Ser negociante cantando
Fazer advocacia com o sorriso exato
Se com isso não perdesse o que por fatalidade de amor
Sabe ser o melhor, o mais doce e o mais eterno da tua puríssima carícia.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

(Jabuticaba por Joyce B. Freitas, Salvador-Bahia, 2011)
Disponível em:http://www.flickr.com/photos/joycebfreitas

Pausas, reticências
Prezados(as) leitores(as) deste blog,
É com certo pesar que comunico: durante o mês de setembro, este mesmo que inspira tanto ,haja a vista a primavera, pausaremos as atualizações. Justificativa: excessos. Rotinas, prazos, urgências. Ossos do ofício, o que há de se fazer. Porém, como já disse, a causa é justa, pois estarei nestes próximos dias dedicada a escrever um projeto, com o qual pretendo ingressar no doutorado este ano, se Deus quiser. Também se não o quiser, entenderei; tenho compreendido que, em que pesem os esforços, as coisas, os processos todos acontecem no seu tempo. Gosto de pensar assim.
Pois bem, contando com a compreensão de todos, necessitarei de toda a concentração para decidir e discorrer sobre o que estudar profunda e exaustivamente durante os próximos quatro anos da minha vida. E o blog, aliás, qualquer canto cativo onde repouse o melhor de nós, o mais fino de nós mesmos, merece sempre a melhor das inspirações; e não aquela, resíduo de esforços outros, daqueles pragmáticos e exaustivos, quase sempre.
Porque o blog é dado à fineza dos tempos mais amenos.Dado à alma leve, ou pesada, enfim, alma dedicada. O blog não é uma casa onde podemos contar com a gentileza de um amigo para regar as plantas enquanto se viaja a negócios. O blog é o lugar dos sonhos mais finos, das palavras semeadas e colhidas uma a uma, em tempos de sol, ou de chuva, da terra quando ela arrebenta – a qualquer estação – assim tão cheia de zelos. Afora isto, a poesia não é afeita a turbilhões, a rotinas impactadas, a urgências desesperadas. A poesia é fluida, livre, espontânea. Não adianta forçar.
Por tudo isto, caros amigos, este texto é um pedido de desculpas pela ausência – ausência de sempre, de certo modo, mas mais pronunciada por estes tempos – e a exposição da devida e plausível justificativa. Isto não quer dizer, entretanto, que de repente eu possa ser surpreendida pelo inusitado: a poesia é dada a surpresas, rebeldias, convulsões. Arrebenta quando quer: como terra fértil, com temperança, paixões convulsas, que não respeita prazos, tréguas, qualquer lógica, norma, lei. Poesia é soberana sempre.
Em tempo, conto com a torcida e as boas vibrações nas minhas árduas semeaduras. Até breve e já cheia de saudades!
Ana Clara Rebouças

quinta-feira, 25 de agosto de 2011


(Reflexão por Joyce B Freitas, 2011)


Das Boas Ideias
Dias desses, eu pensava o quanto me angustia cogitar que podemos perder - por muito pouco, diga-se de passagem – a melhor das ideias que poderíamos ter tido na vida. Mais grave ainda: talvez, apenas uma vez na vida. Algo como Newton ter pensado na morte da bezerra enquanto a bendita maçã despencava sobre a sua iluminada criatividade, sobre a sua bendita clarividência mesmo. Obviamente argumentaríamos que este insight poderia ter lhe ocorrido em outra circunstância qualquer ou – como os mais crédulos em destino diriam – a teria de qualquer jeito à revelia das intercorrências todas. Todavia, não podemos assegurar nem uma coisa, nem outra com absoluta precisão. Mesmo porque – agora para os mais pessimistas – ele poderia ter morrido no dia seguinte: ao invés de uma maçã, uma jaca imensa sobre a cabeça – irônicas fatalidades do destino. Vai saber.
Pois bem. Motivada por esta recorrente angústia desenvolvi o hábito diário de rezar para que – além de ter a melhor ideia – eu a flagre imediatamente. Sim, que eu tenha a minha melhor e mais original ideia – muito embora afirmem por aí que os gregos já inventaram tudo - e a capte precisamente. Que não se perca entre os cálculos das faturas do cartão de crédito, nem entre as listas de compras. A melhor ideia, portanto, sem tirar nem pôr: pura tal qual ela pediu para nascer em sua integridade. Clamo veementemente para que eu a reconheça, que eu tenha a serenidade necessária, a vigília de salvaguardá-la em meio aos tantos outros pensamentos e urgências que invadem os dias.
Dado o meu fascínio irremediável pela poesia, que o momento da minha mais rara clarividência se expresse através de um livro. Que seja um único, mas profundo, arrebatador, revolucionário livro que afete mentes e almas mundo afora. Nada pretensiosa – eu diria – a maça que espero que despenque sobre minha cabeça hora dessas, mesmo sabendo que os dias tem sido via de regra um trem bala cheio premências e agitações todas, de modo que o que temos de menos é tempo para sombra, água fresca e probabilidades como estas. Porém, modéstia qualquer à parte – e não nos custa sonhar nunca – algo como o rompante de Pessoa quando – de mãos dadas com Caeiro – escreveu de pé, contínua e abruptamente, quase todos os poemas do seu Guardador de Rebanhos. Fragmentos biográficos que li por aí, não sei se procedem, mas inspiram meus desejos mais ávidos pela palavra.
Peço pelos outros também. Porque todo mundo – ao seu modo – quer ter uma melhor ideia. Há quem pense cotidianamente na melhor forma de enriquecer e, portanto, ficar rico seria o desdobramento da sua melhor ideia. Há quem pense em projetos para se melhorar, para melhorar o mundo.  Há para quem a melhor ideia é sempre a providência do dia de amanhã, inclusive, aquelas com o que de comer: daí devo concordar sempre com o poeta que "gente é para brilhar, não para morrer de fome". Estas - as providências do sobreviver - não deveriam ser necessariamente a melhor ideia tida ao longo de uma vida. Há tantas raridades a se pensar.
Há que pense diariamente no amor, quem espere tanto do amor e o amor arrebatador, aquele de se construir vida. Há quem planeje a volta ao mundo, um amor em cada lugar. Há quem busque a melhor imagem – de si, do instante, dos flagras todos. Há quem persiga obstinadamente a cor, a forma, o som mais original. Há quem busque a melhor história – aquela nunca antes contada. Há tantos desejos ávidos pelas boas ideias que refazem a vida, o viver.
Ana Clara Rebouças

terça-feira, 16 de agosto de 2011

(Por Joyce B. Freitas, Chapada Diamantina, 2011)


Do Amor, das Contradições
Dia desses, eu escrevia inspirada em Benedetti sobre o quanto o amor é uma trégua na vida. O quanto que é flor entre escombros das urgências; o quanto que é brisa frente às intempéries vulcânicas que são o concreto dos dias. Pois bem: o seria – e é mesmo – uma trégua para tudo isto, para as duras exigências todas; um lugar bom; um refúgio, uma morada desde a alma até um estar no mundo assim mais cheio de paz. Ao menos em tese, diriam os mais niilistas, pessimistas, etc.
Há um tempo escrevia também que o amor me parecia uma casa muito bem acomodada, onde se pudesse sempre se chegar descalça, despenteada, assim, meio descompromissada com as ditaduras todas, mas conclui ultimamente que não é bem deste modo que as coisas se processam. E aqui talvez resida o maior dos pecados dos amantes de longos tempos: acomodar-se não significa – em nenhuma instância – abandonar-se dos zelos, negligenciar-se dos cuidados que depuram a existência. Jamais. Inclusive, engana-se quem pensa que o amor seja completamente cego. Assim fosse, teríamos então uma grande contradição: afinal de contas, quando se amou, amou-se por inteiro, íntegro, pleno de si para contemplação própria, do outro, da vida.
Outra grande contradição seria – por desleixo, excesso de acomodação, ou coisa outra qualquer – não reservar ao amor o melhor que há em si. O que há de mais fino, de mais elaborado, mesmo na dureza que tem sido sobreviver às premências todas. Porque os cotidianos da maioria que labuta a vida são sim – ou tendem a ser – rolos compressores sobre toda sorte de delicadezas que oxigena o amor. É preciso sempre salvá-las, portanto. É preciso depurá-las com muita atenção, as delicadezas. Estar atento, pois, e isto nada tem a ver com acomodação.  
Finalmente, é preciso também interromper os óbvios. Amar é também surpreender-se em meio aos previsíveis. Canso de repetir que é imprescindível flor no meio das segundas-feiras; lilases e café nas quartas; alegrias; ousadias; sonhos renovados sempre. É preciso tanto e tão pouco para amar. Acima de tudo – repito – é preciso não perder-se de si mesmo.
Ana Clara Rebouças  

sábado, 6 de agosto de 2011

(Por Joyce B. Freitas, Pimenta de Cheiro, Salvador-Ba, 2011)




De Coragem e Zelo
Meu amor,
Há pouco se completou meio ano que te amo tanto que resolvi anunciá-lo assim aos quatro ventos, entendendo que escrever é sempre um ato extremo de revelar-se, meio desesperado de entender-se, enfim, de desnudar-se desde a alma. É assim escrever – tem sido assim – ainda mais quando se ama.
Pois bem: eis aqui um manifesto público do meu fascínio grave pela sua presença luminosa nos meus dias. Devo dizer também que nestes últimos tempos estar ao seu lado tem me enchido de coragem ante a vida. A propósito, o amor não é mesmo afeito à coragem? Aliás, seria todo amor assim, dado à coragem? Não sei. Mas se não for mesmo o caso, só sei que te amar particularmente me enche de: você é a coragem. E estou feliz com tudo isto.
Feliz. Vai ver então que Nietsche tinha razão: “a alegria da vida é a luta, amigos”. E se é mesmo a luta – se não vencê-la, ao menos vivê-la intensamente – seria a coragem que vem do amor que nos move mais fortalecidos frente às batalhas cotidianas todas. O acordar, as seqüências dos dias, os inusitados, a sobrevivência, pois: o amor amansa.
Afora batalhas e coragem, eis que o amor é todo ele zelo. Sim, na contramão das lutas, políticas, diplomacias, concessões e estratégias, o amor também é afeito ao zelo. É como dizia brilhantemente a senhora Lispector (acho que ela mesma): todos os dias quando acordo, corro para tirar a poeira da palavra amor. É verdade: sobre o amor, não se pode deixar assentar a poeira densa dos mal-entendidos, das torpezas tão intrínsecas à condição humana, das hostilidades possíveis mesmo quando se ama tanto. Definitivamente, é preciso espanar a poeira. Lustrar o amor, revelar diariamente os seus brilhos, seus encantos. Amor é para reluzir à revelia do peso ofuscante dos dias e suas contingências todas.  
Amor é todo zelo. É olhar de primeira vez. Aliás, a vida toda – o mistério de viver todo ele – deveria ser sempre um olhar de primeira vez porque tudo é dado a se acostumar: do sofrer à beleza insondável que é o existir de tudo. Resta-nos então, amor, é um acostumar-se encantado: assim cheio de coragem e zelo.
Ana Clara Rebouças

quinta-feira, 28 de julho de 2011

(por Ana Clara Rebouças, São Paulo – SP, 2011)
Hortênsias
Aos Sorlinos
Dia desses, eu partilhava muito honrada e feliz da alegria absurda de uma família que então se reencontrava após mais de década. Tratava-se da reunião de seis filhos em razão do aniversário da matriarca: não haveria outra descrição que lhe coubesse dada a grandeza da sua presença ali, na vida, nos dias dos seus, e agora também na minha, em algum grau. Tamanha grandeza ocupava aqueles poucos metros quadrados da morada acolhedora de um bairro de São Paulo que seria impossível não sucumbir à profusão dos sentimentos que perpassavam olhares e dizeres por ali.
Em certo momento, um dos netos – aquele que mais expressou a extraordinária emoção que embalava a todos ali – disse com toda a espontaneidade de alma de criança: “o melhor lugar do mundo é a sala da minha avó”. Ele estava absolutamente certo, considerando o tanto de memórias, retratos, lembranças, cores e tons expostos e tecidos pelas mãos nobres e laboriosas da aniversariante sempre tão zelosa. O jeito de hortênsias que as coisas ali têm; a nobreza das hortênsias sobre os gestos. Considerando ainda o reencontro, ele então tinha toda a razão sobre o quanto de amores intensos cabia naqueles poucos metros bem partilhados: e isto não faz mesmo maravilhoso o viver?
Maravilhoso também era ser cúmplice desta alegria imensa, embora entremeada de certas nostalgias, incertezas, incompletudes: mas não é mesmo assim o viver, incongruente? Era mesmo preciso sentir de perto, naqueles poucos metros quadrados tão bem partilhados, o tanto de amor que os mobilizava ali, em todos os dias de suas vidas. O mesmo amor que nos faz humanamente viáveis ante as torpezas mundo afora.
Apesar dos pesares, ainda tem sido o amor o melhor lugar do mundo.
Ana Clara Rebouças

terça-feira, 12 de julho de 2011

(Plenitude, por Joyce B. Freitas, Salvador-Ba, 2011)



Da plenitude
Se há finitude neste viver nosso – esta mesma com a qual temos que nos conformar penosamente todas as vezes em que revivemos o adeus – há também algo em sua contramão, como um contraponto, como a plenitude. Plenitude é algo então como se dá conta que – em que pese as incompreensíveis e injustas medidas do quanto de vida é possível existir – há de ser pleno nos possíveis cotidianos.
Algo como se fosse fundamental e premente se aprender a viver o absoluto das horas, dias, meses, anos: nunca sabemos quanto, pois. Plenitude é algo como o único antídoto contra a angústia de não se saber, angústia ante as biografias, em algum grau, sempre inacabadas. É algo como se convencer do infindável possível e cabível em cada momento vivido tal como o ínfimo intervalo entre o zero e hum encerra também o infinito, tal qual a ousadia de dois pequeninos pontos que traçam retas inexoráveis no tempo, no espaço.
E as retas – estas da vida prática – são mais sinuosas que pretendem os mais obstinados pelos caminhos bem traçados. A vida é toda ela tortuosa: as travessias, as trajetórias, o transitar por entre a gente, os planos, as expectativas, as renovações. Fragmentos dos sonhos, a incompletude. Os contínuos e descontínuos; os limites e a superação. Aqueles que atravessaram, aqueles que ficaram no meio do caminho, aqueles que nem início. A lógica convulsa do viver: a plenitude é o que nos resta.
Ana Clara Rebouças

terça-feira, 5 de julho de 2011

(Foto: Ana Clara Rebouças, Salvador-Ba, 2010)

Da felicidade
Outro dia, o meu amor me chegou dizendo – e sua revelação me caiu com a leveza de folha de outono sobre os ombros – que a felicidade é uma questão de aprendizado. Depois de muito refletir sobre, conclui também que há, lamento, muita gente que de fato não sabe ser feliz. Sim, simplesmente não sabe ser feliz e, ao mesmo tempo em que isto possa parecer assim tão descabido, tão absurdo, é perfeitamente compreensível não sabê-la, a felicidade. Por que, quem bem a ensina? Em que escola se aprende? Que escola se não esta a dos improvisos, da humildade das tentativas nossas, dos tortuosos todos da vida esta cotidiana, dos planos para o futuro, todos esses sem garantia de alcançá-la? Daí, eu me perguntava, neste esteio doce que é o esforço do entendimento, como é mesmo que se aprende a felicidade?
Dentre as inconclusivas respostas já tecidas pelos tantos poetas, filósofos, até cientistas, santos, visionários, mocinhos e bandidos, aquela que mais se aproxima da pergunta acima, talvez, seja justamente aquela que vem da sabedoria dita popular quando dizem as Marias e os Josés por aí que “se foi feliz e não sabia”. Se foi então possível ser feliz em algum corte do tempo e não se deram conta, é porque a felicidade deve estar mesmo em um nível de se saber, de assim se perceber: feliz, apesar das contingências todas.
E entre tantas imprecisões e incertezas – estas de se perceber como pré-requisito para ser feliz – restou-me ser mais pragmática no momento. Fugi da profundidade de se saber. Daí, sai listando possíveis felicidades – porque realmente, de tão intensas, são mesmo felicidades. Por exemplo, ouvir Ella Fitzgerald e Louis Armstrong cantando Summer Time; fora eles, radinho de pilha cheio de memórias para se escutar, há sempre uma canção preferida para nos lembrar que viver vale muito à pena. Digo sempre e continuarei repetindo: café e pão de queijo ou bolo de laranja, ou biscoitos feitos todo a zelo são de uma felicidade absurda. O melhor poema lido nos últimos tempos: e isto é tão renovado a cada encontro com o inusitado dos versos que por si só – a renovação – se constitui uma felicidade extrema. Beira-mar, pôr-do-sol, ninho de passarinho, trilha de formiga em seu devido lugar são de praxe, mas são todos absolutamente felizes, o que há é muita gente já mal acomodada na felicidade que vem deles.
Outros itens possíveis: a feliz disposição de viver que o amor dá, como bem me disse uma grande amiga dia destes. Eu lembraria a ela, todavia, que o revés também se aplica: amar requer a feliz disposição de viver, e vivê-lo, o amor. Mais um item fundamental: abandonar certos pressupostos equivocados que maculam a fineza do próprio existir é matéria básica em termos de se ser feliz. Daí, voltamos ao início quando dizíamos que fundamental mesmo, em assunto de felicidade, é se saber; se perceber; não estar alheio a si. Fato.
E não é que eu esteja falando exatamente do lugar da felicidade – porque para falar assim seria imprescindível habitar por lá, ser absolutamente feliz, se é que isto é realmente possível, e realmente não é o caso – mas ao menos sigo aprendendo o “caminho das pedras”. Há um “caminho das pedras”: se saber, por exemplo. Eu, por exemplo, me sei encontrar naqueles itens; sei-me, por exemplo, que a minha felicidade não é bem a do tipo que está à venda na concessionária mais próxima ou no sorriso astuto do corretor de imóveis. Nada contra, nada mesmo, quem assim seja realmente feliz. Talvez, quem sabe, seja até mais fácil ou mais objetivo do que a minha felicidade que está em um estado, digamos, mais imaterial, etéreo, amorfo. Enfim. Enquanto ela – a felicidade – não nos chegue plena, e temos dúvidas se assim é possível, vivamos os itens felizes estes da cotidianidade.
Ana Clara Rebouças

terça-feira, 28 de junho de 2011

(Foto: Ana Clara Rebouças)


Eis aqui a casa nova!

Sejam todos (as) muito bem vindos (as)!

Ana Clara Rebouças

terça-feira, 14 de junho de 2011

Tanto quanto uma rosa...

(Foto: Ana Clara Rebouças, São Paulo, SP, 2011)
Porque dia desses eu me emocionava muito com o fato do amor ser dado à simplicidade. Porque o amor – aqueles que de tão pleno e profundo não cabe mesmo em si – cabe em uma rosa ou em bouquet; cabe em um lírio ou em um campo infinito de lavandas; na correspondência exata do segundo de um olhar ou nos entendimentos que se desvelam palavra a palavra, anos a fio. Isto significa dizer, por exemplo, que o amor – que é amor de verdade – se reconhece desnudo das vaidades todas: ou seja, cabe tanto em uma rosa, quanto em uma dúzia delas. Cabe também na humildade do perdão.
Porque outro dia eu me encontrava com um verso do nosso poeta, talvez, o mais apaixonado dos poetas desta nossa “pátria mãe gentil”; e ele pedia piedade, em sua Elegia Desesperada, pelo “mocinho franzino que só tem de seu as costelas e a namorada pequenina”. Daí, eu havia discordado do poeta – muito embora ele não necessariamente tenha pretendido este sentido – pois, em matéria de amar, nunca se pode ter “só” uma “namorada pequenina”, aliás, o amor mais absoluto cabe tanto na pequenez de uma primeira namorada quanto nas mãos frondosas dos amantes de uma vida toda compartilhada.
Porque dia desses eu celebrava a dádiva do amor; a coisa rara e ímpar que ele é. O amor, por exemplo, considera o ser amado assim tão infinitamente apaixonante esteja ele conduzindo um “Chevrolet gosmento”, aquele estimado por outro poeta nosso, como dentro de uma Limusine. Amor adora tanto os trejeitos quanto os grandes atos para a contemplação: daí porque cabe tanto aquele jeito, tão próprio, de franzir a testa, quanto aquelas surpresas arrebatadoras de meio de tarde; daí porque tanto cabe aquela rosa quanto um mar delas, um infinito delas. Disto tudo então se depreende que o amor é – ou deve ser – dado a desapegos estes que o divinizam, o amor. Santificado seja o amor.
Ana Clara Rebouças

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Das Incongruências

(...os liláses de Monet...) 
Tudo o que eu sei, somente sei porque amo. (Liev Tolstoi, em Guerra e Paz, 1865)

Já que citamos Gabo no último texto aqui postado, continuemos a falar sobre esta artéria vital que é a literatura, e de seus veios, seus mestres sagrados. É que só mesmo Gabo para me tranqüilizar a respeito das urgências – estas nossas que temos todos, cada um a seu modo e ao seu teor – de lograr um sonho fundamental no espaço-tempo das nossas biografias. No meu caso, um livro. Gabo, por exemplo, me confessa que levou nada menos que dezenove anos para escrever os seus Cem Anos de Solidão. Entre as idas e vindas com enredos e alinhavos, foram então quase duas décadas! Isto me traz certo alento, embora não resolva de todo a inquietude do que estar por se fazer.
É por estas e outras que gosto tanto das biografias, melhor ainda, das autobiografias porque tanto assim conhecemos o quanto de humanidade cabe nos gênios, o quanto de heresia cabe nos santos. Desnudam-se os pecados, revelam-se os segredos, os nossos, inclusive. E reconhecemos pois as incongruências das nossas próprias vidas. Incongruente tem sido o fato de eu não me dedicar o quanto gostaria e deveria à felicidade absurda e dolorosa da escrita. Sim, que não se engane: nem sempre, talvez, quase nunca, os textos fluem; na maioria das vezes, os textos doem. A propósito, Lispector já descrera isto muito bem.
Incongruentes, portanto, têm sido os dias. Às vezes, a sensação é de que a vida caminha tortuosa demais ante aquilo que mais se deseja. Porque penso que seria necessário pausar esta vida prática, ordinária, burocrática para ceder muito mais espaço à criação. E isto nunca tive na vida: tempo largo e exclusivo para a escrita quando esta se revelou a mim enquanto uma necessidade vital. O próprio Gabo revela que não raro passou anos e anos dialogando com as personagens das suas tantas tramas e tecendo ponto a ponto todas as suas vicissitudes. Ou seja, isto requer tempo e espaço vastos, muito vastos.
Não apenas Gabo, mas Sabato também – de quem ficamos órfãos há menos de um mês – nos alertava, em “O Escritor e seus Fantasmas”, que a condição mais preciosa do criador é o fanatismo. E acrescenta: tem que ter uma obsessão fanática, nada deve antepor-se a sua criação, deve sacrificar qualquer coisa a ela; sem este fanatismo não se pode fazer nada importante. Depreendo disto que precisarei – preciso, é bem verdade – de todo tempo, espaço, energia e empenho para a devoção que uma cria exige do seu criador.
A esta altura, este texto deixa de ser algo perto de uma crônica para ganhar mais um tom de desabafo. Uma amiga muito querida, inclusive, do mundo das Letras, diria que aqui – sim, este humilde blog que vos fala – já não é mais espaço para despejos assim tão pessoais. Entendo perfeitamente o que ela quer me dizer, com toda a melhor das suas intenções, todavia entre o entendimento e a liberdade da palavra, cedo à segunda opção porque mesmo implacável.
Outra amiga, igualmente querida e devoradora sagaz da boa literatura, já defenderia o contrário: que caberia aqui a palavra livre, tal como vem ao mundo, desde quando seja em nome de uma constante atualização dos textos postados. Entendo absolutamente também o que me sugere, com a mais nobre das suas intenções, porém entre o entendimento e a rebeldia da palavra, rendo-me à segunda porque ela – a palavra – só vem quando quer.
Enfim, entre liberdades e rebeldias, sigo servindo à palavra. O contrário também se aplica: sigo me servido das palavras. Principalmente porque, em meio às tantas incongruências vividas cotidianamente, o blog é trégua, o blog é uma casa que eu gosto de estar. E que fique claro: não desmerecendo meus esforços e elogios generosos que me chegam, ainda está longe, muito longe do que gostaria de alçar em um livro. Vejo-o, portanto, como pequenos vôos, mas tão cheios de sinceridade e de mim. O blog, esta casa onde gosto de estar.
Sei que ainda precisarei dedicar-me cega e obstinadamente... Resta-me seguir os impulsos...

Ana Clara Rebouças

Dos Arcádios, dos Aurelianos

(Mami e eu nos idos do século passado,
Chapada Diamantina, 1980)
Para a família Rebouças, tão marcadamente enovelada entre seus Aurelianos, seus Arcádios.
Só sei dizer que Gabriel Garcia Marquez em seu “Cem Anos de Solidão” poderia facilmente ter descoberto as leis da genética se fosse o caso, antes mesmo de Mendel lá pelos idos de antigamente. Todavia, Gabo a teria feito assim muito mais cheia de lirismos e encantamentos; assim muito mais poética – e nem por isto menos convincente – seria a teoria do que já é o simples e complexo fato de descender.
Neste sentido, entre as sucessões de Arcádios e Aurelianos, é tanto bonito de se ver a redundância inusitada-previsível que a natureza tem. Isto porque, talvez, seja então do feitio da vida esta doce tentativa de imprimir as existências nas faces, nos jeitos, nos gostos, nos gestos, e então perpetuar gerações e gerações no tempo, no espaço. É mesmo lindo de se ver o afinamento harmonioso dos acasos.
Sigo pensando sobre isto justamente uma vez que nestes últimos anos tenho me achado muito, mas muito parecida mesmo com a minha mãe. Inclusive, como jamais cogitei parecer porque não somente tenho expressado as suas virtudes – modéstia à parte, nobres virtudes – mas também das suas cóleras e manias caóticas de desorganização, por exemplo. Daí, sou obrigada a concordar que isto que chamam de “genética” – e que Gabo descreveria em seu livro tão extraordinariamente – é mesmo implacável.
Sendo assim – uma expressão inusitada e previsível da minha mãe – tenho me furtado a tantos caprichos dentro do dia a dia, o que chamarei aqui de cotidianidades, que tem sido como um direito irrestrito a concessão diária de um prazer, um único e simples prazer, nem que este venha da simples rosa que se avistou de uma pobre sacada solitária. Porque minha mãe é – sempre foi – muito mais dada às cotidianidades do que às projeções: minha mãe, e tenho assim sido, é muito mais presente do que futuro, minha mãe é o dia de hoje.
Somos então, a minha mãe e eu, cheias de lapsos de cotidianidades: ao invés de castelos, vastos castelos, somos dadas ao banco da praça porque ali, somente ali, passeia uma brisa de fim de tarde, tem o cheiro de café das casas vizinhas e as crianças sorriem ali porque livres, aos pés do banco da praça. Não que não se deseje os vastos castelos, mas as nossas felicidades, prazeres e alegrias absurdas estão também tão ao alcance das mãos e pertencem a tudo que é da ordem do diário, às cotidianidades. Beiju e chocolate quente têm, por exemplo, o mesmo peso de felicidade do que um banquete farto qualquer; girassol, desconfiamos, tem alguma coisa de divino – prova incontestável da existência de um deus – e só por haver poesia vale à pena ter vivido.
Então tem sido assim: não tenho passado um dia que seja sem que me permita a uma mínima alegria. Todavia, na contramão de toda leveza, não há também sequer um dia que não caiba algum esforço, alguma labuta, de quando em quando, um pesar. Porque, como mesmo diz a minha mãe, inspirada em Santa Terezinha, um dia sem sacrifico é um dia perdido. E ainda que, conscientemente, eu não guarde em mim um traço de religiosidade qualquer, tenho apreço por este empenho, assim tão cheio de fé, que vem da minha mãe, e que, por sua vez, vem da minha avó. Assim, entremeando os sacrifícios nossos de cada dia, nos permitimos ao hábito incontrolável de alguma felicidade, mesmo que isto tenha um custo de ordem qualquer.
Portanto, entre os enovelados Aurelianos e Arcádios, devo confessar que sigo mais a linhagem que vem da minha mãe e que, certamente, veio da minha avó. Dela, entretanto e infelizmente, desconhecemos as suas redundâncias – e toda a poética que delas viria – perdidas que estão na sua ascendência italiana paterna e nas raízes africanas que corriam vívidas nas veias da bisa. Pena, as desconhecemos ambas, as quais nem ela mesma teve acesso. Incongruências do viver. No mais, seguimos nos encontrando e nos perdendo; reconhecendo-nos e nos surpreendendo com as reedições fantásticas que a vida nos traz...
Ana Clara Rebouças

domingo, 8 de maio de 2011

Dos Adeuses

(Flor dos Três Corações por ACRebouças, Rio de Janeiro, 2011
Para Sibele Rebouças, minha outra mãe."...todos os encontros são adeuses..."
(Mário Quintana)

Muito cedo aprendi que a vida é tecida fora a fora por adeuses. Sim, a vida é mesmo toda feita de adeus. E foi na altura dos meus oito anos de idade, assim realmente tão cedo, que aprendi, por exemplo, o que é perder a convivência diária de um grande amor. Grande amor, a esta época da vida, só poderia mesmo ser daqueles que habitam o mesmo lar: uma tia amável, quem me cuidou desde o nascimento e bem ao seu modo particular: laços de fita, dança na chuva, pão-de-ló oferecido no meio de uma tarde qualquer, beijo morno na testa tal qual pétala em queda. É, o meu primeiro grande adeus me chegou – e talvez só poderia mesmo vir assim – das incoerências do amor.
Adeuses desvelados um a um, na mansidão dos outonos e primaveras, na euforia dos verões ou na calmaria tristonha dos invernos. Adeuses de todas as naturezas, tons, intensidades, loucuras vida e estações afora. No caso precoce e específico da minha tia, casou-se e partiu para viver em outra cidade longe dali, onde vivíamos um tipo de dia a dia que fazia zelo e afetos. Foi realmente um duro e dolorido adeus. Passadas quase duas décadas, aliviou-me, e alivia, o fato da minha tia permanecer junta a seu grande amor até os dias de hoje, notável raridade em tempos nossos de tamanha fluidez dos laços todos.
Confesso que, àquela época, já experimentava, junto com a sensação progressiva da perda, o ciúme, este primo próximo do adeus que não se desejou – ou do risco de. Sim, chegava-me a frieza cortante do ciúme ao vasculhar clandestinamente pela fresta da janela, e na pontinha dos pés miúdos, os beijos e abraços amorosos de namorados inundados da luz do luar. Todavia, aquietava-me o coração e roubava-me o mais feliz dos sorrisos de dentes de leite quando voltava das sessões de luas apaixonadas e me dedicava doces canções de ninar, tão bem entoadas em sua voz suave. Entendia então que não se tratava de adeus: amor que é amor é, pois, recorrente. O amor: renovadas idas e vindas, de esplendor e adeus.
Longe dos tempos de dentes de leite, aprendi, entretanto, que há adeuses enquanto fatos e processos: longas partidas, a passagem do tempo, novas formas de, o extremo da morte. E todo mundo lida, ao seu próprio modo, com os adeuses que lhe chegam implacavelmente, pois sempre chega o adeus. E o bonito da vida está nesta infinidade em se recriar sobre as circunstâncias. Há então quem se confine nas memórias; há quem se alimente dos lamentos. Há quem viaje o mundo; há quem prefira o bar. Há os adeptos da fé; há os que saem para bailar; e há quem compre compulsivamente. Há quem se dedique exaustivamente à poesia; há quem prefira um caminhar solitário à procura de. Há tantas formas de se reencontrar...
...dentre os tantos adeuses, o único enfim ao qual não podemos ceder é o de nós mesmos...
Ana Clara Rebouças

domingo, 1 de maio de 2011

“Seis Bilhões de Outros”


Dizia um sábio que “não padece de solidão quem tem vida interior”. Pensei nisto ao percorrer os veios tão vívidos de São Paulo, cidade pela qual tenho profundo fascínio. Era um domingo de Páscoa e, longe de casa, da família, optei por passar o dia entre “seis bilhões de outros”, como bem se intitulava a exposição em um famoso museu da capital. E assim, em meio a tanta diversidade, a tanta riqueza, esta ímpar que vem da pessoa humana, não se pode mesmo se sentir só.
É assim que São Paulo sempre me recebe: entre seus tantos milhões de outros, esta gente tão diversa, mas tão sua. São Paulo da sua gente tão exaustivamente trabalhadora. Emociona-me o trabalhador de São Paulo, o tanto de esforço com o qual tece vida. Emociona-me encontrar os conterrâneos e, aqueles que me prestam um serviço qualquer, o fazem com redobrada generosidade porque, talvez, encontrem em mim um tanto de história e de afetos que deixaram para trás.
São Paulo me recebe com suas grandes avenidas agitadas, tumultuadas de corpos e avidez, mas também me acolhe em suas ruas estreitas, pacatas, cheias de memórias e nostalgias. São calçadas cheias de doces quaresmeiras lilases: São Paulo me acolhe com a generosidade de um céu claro, mas também com sua garoa tristonha ou as chuvas tórridas sobre mentes e corações.
São Paulo é o mundo todo; é Brasil norte a sul; é nordeste, sua gente, força, persistências, temperanças. São Paulo é contínua construção: sua ética, sua lógica, suas métricas. São Paulo é ousadia: sua estética libertária, revolucionária, renovada nos tempos, espaços. São Paulo me acolhe com as suas surpresas. São Paulo é pulso, impulsos, sonhos, projetos. São Paulo é poesia, é concreto, é pluma, é densidade. Poemas, suspiros fumos no ar...
Ana Clara Rebouças