domingo, 14 de setembro de 2014




Subterfúgios

Para Jambo

Simplesmente porque ao ser humano foi concedida a liberdade, ele pode incorrer ao uso da dominação do outro, como bem a melancólica história dos homens tem nos revelado. E justamente porque o humano domina o outro, Deus – esta inteligência suprema, e que Spinoza nos traduziu tão bem – criou o subterfúgio. Sim, o subterfúgio é criação divina.

Pois bem, lá nas definições de dicionário se entende subterfúgio, amplo modo, como recurso que se utiliza, inclusive de forma ardil, quando alguém busca se esquivar de algo; ou quando tem fins de ludibriar ou de tirar vantagens de outrem ou de uma dada situação. Enfim, parecem espúrias as qualificações vinculadas ao termo. Aqui, todavia, insisto: é mesmo expressão divina o subterfúgio.

Assim sendo, vamos à praticidade do exemplo: a metáfora é um subterfúgio. Porque quando o homem dominou os seus por meio das ditaduras, o poeta o criticou através da metáfora; o poeta os livrou pela metáfora; a vida se fez viável por causa da metáfora. Aliás, independentemente das ditaduras, para qualquer outro sofrimento humano, temos subterfúgios: as pinceladas do artista; o solfejo de quem suspira; a dança; a história contada, retratada, filmada. Para tudo, graças a Deus, há subterfúgios.

Outra: o hábito é um tipo de subterfúgio. Pois, por exemplo, quando o ser humano decidiu espoliar o outro, e até deixar morrer de fome o seu igual, ou quem sabe mesmo antes disso, o corpo se habituou. É por isso que o nordestino é sincera e honestamente muito feliz comendo a sua farinha com carne seca, quando as tem; e o francês, igualmente feliz com seus caracóis brotando do chão e suas bebidas a borbulhar.

Finalmente, e mais implacável, mais irrefutável ainda é constatar que a própria física do mundo, e não só a metafísica ou isso que chamam da vida social, é subterfúgio divino. Se não for, o que dizer das miragens? Por que, apesar dos acasos, a vida é tão redundante? E quem se acostuma com o arco-íris; ou quem se convence do que une o imã? O que explica o que faz um trejeito se repetir três gerações depois, se aquelas pessoas nem se conheceram? Ou por que os astros longínquos iriam se ocupar de dizer muito sobre você?

A propósito, os signos são subterfúgios. As crenças, os credos, especulações, hipóteses também. Estatísticas nem se fala. Sonhos são os mais nobres e, ao mesmo tempo, os mais ordinários deles. E nem vou me permitir a falar do amor por aqui... Enfim, são mesmo divinos os subterfúgios... é mesmo divino o viver.

Ana Clara Rebouças

sábado, 19 de abril de 2014

Imagem disponível em: http://www.kboing.com.br




Do amor: “poeira” e desejo...

Quando você escolhe uma pessoa para amar – e esta pessoa acolhe este amor, o que chamam então de reciprocidade – eis que algo divino já ocorre desde daí. Afora isto, chegam os dias com suas brisas e revoluções.

Tenho um imã de geladeira de onde se observa: todo dia, quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra amor. A frase é atribuída à senhora Lispector; mas nunca se sabe a verdadeira procedência das coisas nos dias de hoje, neste mundo tão poroso. Sendo ou não, fato é que é bem acertada.

Quem ama sabe das poeiras que se assentam sobre o amor, inevitavelmente. Porque poeira são partículas que advém de tudo que habita o entorno; da pele, por exemplo. Por isso, inevitáveis, intrínsecas, às vezes.

E, poeira, sabemos: quanto mais se acumulam, mais embaçam, desgastam, arranham o amor. Daí, espaná-la evita mesmo desgastes, ranhuras, opacidades. Afinal, a gente sempre quer o amor liso, lindo e lustrado – com aquela cara de quem nunca vai quebrar – tal como quando nos chegou novinho em folha, refletido naquele brilho de primeiro olhar.

Tiremos a poeira, então. Dá trabalho, mas há grandes recompensas. Tiremos a poeira! E tirá-la, agora do concreto à abstração, está nas palavras de doçura; está nas reconciliações; nos bons e justos acertos de contas; em tudo, enfim, que se pode fazer em nome do amor.

Já do desejo, este é um caminho bem mais sinuoso. Isto porque, advertia-me dia desses uma filósofa*, quem eu respeito bastante, desejo é desobediência, pura rebeldia. Claro que não é tão simples assim; uma hora dessas, pretendo divagar mais sobre.

Por ora, muito resumidamente, temos: enquanto amor é templo sagrado, desejo é subversão. Amor é plenitude; desejo, insatisfação. Assim, sendo dado à rebeldia, uma vez satisfeito, abandona a sua própria condição. Mas, em que pesem discrepâncias entre o amor e o desejo, não é mesmo a insatisfação que nos move?

Bem, resta ao amor o eterno e desafiante convite do desejo à sua forma original; e isto quer dizer, à sua latência, à sua satisfação “não satisfeita”, ao seu meio-caminho, enfim. Resta ao amor o eterno e desafiante convite do desejo ao seu doce e (des)empoeirado lar.


Ana Clara Rebouças

 
*Marilena Chauí em Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa, 2011.

domingo, 30 de março de 2014




Foto: Ana Clara Rebouças, 2014

Para F.Sorlino


Disse Drummond: quem tem amor tem coragem.
Retrucou Rosa: o que a vida quer da gente é coragem.
Logo, concluo: a vida é toda ela desmedido ato de amor.
 

Ana Clara Rebouças