quinta-feira, 26 de maio de 2011

Dos Arcádios, dos Aurelianos

(Mami e eu nos idos do século passado,
Chapada Diamantina, 1980)
Para a família Rebouças, tão marcadamente enovelada entre seus Aurelianos, seus Arcádios.
Só sei dizer que Gabriel Garcia Marquez em seu “Cem Anos de Solidão” poderia facilmente ter descoberto as leis da genética se fosse o caso, antes mesmo de Mendel lá pelos idos de antigamente. Todavia, Gabo a teria feito assim muito mais cheia de lirismos e encantamentos; assim muito mais poética – e nem por isto menos convincente – seria a teoria do que já é o simples e complexo fato de descender.
Neste sentido, entre as sucessões de Arcádios e Aurelianos, é tanto bonito de se ver a redundância inusitada-previsível que a natureza tem. Isto porque, talvez, seja então do feitio da vida esta doce tentativa de imprimir as existências nas faces, nos jeitos, nos gostos, nos gestos, e então perpetuar gerações e gerações no tempo, no espaço. É mesmo lindo de se ver o afinamento harmonioso dos acasos.
Sigo pensando sobre isto justamente uma vez que nestes últimos anos tenho me achado muito, mas muito parecida mesmo com a minha mãe. Inclusive, como jamais cogitei parecer porque não somente tenho expressado as suas virtudes – modéstia à parte, nobres virtudes – mas também das suas cóleras e manias caóticas de desorganização, por exemplo. Daí, sou obrigada a concordar que isto que chamam de “genética” – e que Gabo descreveria em seu livro tão extraordinariamente – é mesmo implacável.
Sendo assim – uma expressão inusitada e previsível da minha mãe – tenho me furtado a tantos caprichos dentro do dia a dia, o que chamarei aqui de cotidianidades, que tem sido como um direito irrestrito a concessão diária de um prazer, um único e simples prazer, nem que este venha da simples rosa que se avistou de uma pobre sacada solitária. Porque minha mãe é – sempre foi – muito mais dada às cotidianidades do que às projeções: minha mãe, e tenho assim sido, é muito mais presente do que futuro, minha mãe é o dia de hoje.
Somos então, a minha mãe e eu, cheias de lapsos de cotidianidades: ao invés de castelos, vastos castelos, somos dadas ao banco da praça porque ali, somente ali, passeia uma brisa de fim de tarde, tem o cheiro de café das casas vizinhas e as crianças sorriem ali porque livres, aos pés do banco da praça. Não que não se deseje os vastos castelos, mas as nossas felicidades, prazeres e alegrias absurdas estão também tão ao alcance das mãos e pertencem a tudo que é da ordem do diário, às cotidianidades. Beiju e chocolate quente têm, por exemplo, o mesmo peso de felicidade do que um banquete farto qualquer; girassol, desconfiamos, tem alguma coisa de divino – prova incontestável da existência de um deus – e só por haver poesia vale à pena ter vivido.
Então tem sido assim: não tenho passado um dia que seja sem que me permita a uma mínima alegria. Todavia, na contramão de toda leveza, não há também sequer um dia que não caiba algum esforço, alguma labuta, de quando em quando, um pesar. Porque, como mesmo diz a minha mãe, inspirada em Santa Terezinha, um dia sem sacrifico é um dia perdido. E ainda que, conscientemente, eu não guarde em mim um traço de religiosidade qualquer, tenho apreço por este empenho, assim tão cheio de fé, que vem da minha mãe, e que, por sua vez, vem da minha avó. Assim, entremeando os sacrifícios nossos de cada dia, nos permitimos ao hábito incontrolável de alguma felicidade, mesmo que isto tenha um custo de ordem qualquer.
Portanto, entre os enovelados Aurelianos e Arcádios, devo confessar que sigo mais a linhagem que vem da minha mãe e que, certamente, veio da minha avó. Dela, entretanto e infelizmente, desconhecemos as suas redundâncias – e toda a poética que delas viria – perdidas que estão na sua ascendência italiana paterna e nas raízes africanas que corriam vívidas nas veias da bisa. Pena, as desconhecemos ambas, as quais nem ela mesma teve acesso. Incongruências do viver. No mais, seguimos nos encontrando e nos perdendo; reconhecendo-nos e nos surpreendendo com as reedições fantásticas que a vida nos traz...
Ana Clara Rebouças

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