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Do amor: “poeira” e desejo...
Quando você escolhe uma
pessoa para amar – e esta pessoa acolhe este amor, o que chamam então de
reciprocidade – eis que algo divino já ocorre desde daí. Afora isto, chegam os
dias com suas brisas e revoluções.
Tenho um imã de geladeira de
onde se observa: todo dia, quando acordo,
vou correndo tirar a poeira da palavra amor. A frase é atribuída à senhora
Lispector; mas nunca se sabe a verdadeira procedência das coisas nos dias de
hoje, neste mundo tão poroso. Sendo ou não, fato é que é bem acertada.
Quem ama sabe das poeiras que
se assentam sobre o amor, inevitavelmente. Porque poeira são partículas que
advém de tudo que habita o entorno; da pele, por exemplo. Por isso,
inevitáveis, intrínsecas, às vezes.
E, poeira, sabemos: quanto
mais se acumulam, mais embaçam, desgastam, arranham o amor. Daí, espaná-la
evita mesmo desgastes, ranhuras, opacidades. Afinal, a gente sempre quer o amor
liso, lindo e lustrado – com aquela cara de quem nunca vai quebrar – tal como
quando nos chegou novinho em folha, refletido naquele brilho de primeiro olhar.
Tiremos a poeira, então. Dá
trabalho, mas há grandes recompensas. Tiremos a poeira! E tirá-la, agora do
concreto à abstração, está nas palavras de doçura; está nas reconciliações; nos
bons e justos acertos de contas; em tudo, enfim, que se pode fazer em nome do
amor.
Já do desejo, este é um
caminho bem mais sinuoso. Isto porque, advertia-me dia desses uma filósofa*,
quem eu respeito bastante, desejo é desobediência, pura rebeldia. Claro que não
é tão simples assim; uma hora dessas, pretendo divagar mais sobre.
Por ora, muito resumidamente,
temos: enquanto amor é templo sagrado, desejo é subversão. Amor é plenitude;
desejo, insatisfação. Assim, sendo dado à rebeldia, uma vez satisfeito, abandona
a sua própria condição. Mas, em que pesem discrepâncias entre o amor e o
desejo, não é mesmo a insatisfação que nos move?
Bem, resta ao amor o eterno e
desafiante convite do desejo à sua forma original; e isto quer dizer, à sua
latência, à sua satisfação “não satisfeita”, ao seu meio-caminho, enfim. Resta
ao amor o eterno e desafiante convite do desejo ao seu doce e (des)empoeirado lar.
Ana Clara Rebouças
*Marilena Chauí em Desejo, Paixão
e Ação na Ética de Espinosa, 2011.