domingo, 6 de maio de 2012





(Concreto, por Joyce B. Freitas, Rio de Janeiro)

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Divagações sobre ideais e possibilidades

Qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea.
Nelson Rodrigues

Chega um dado momento da existência nossa que a pessoa passa a compreender verdadeiramente que a vida é toda ela marcada pelos ideais possíveis e não exatamente por aqueles tal como Platão os pintou. Ou, como diz a sabedoria popular: caímos na real, mais cedo ou mais tarde, de que nem todo sonho é possível, nem toda utopia é integralmente viável, nem todo o fim de semana é de sol – até porque há sempre quem prefira o aconchego da chuva na janela – enfim, nem tudo são flores, como afirma também o mesmo saber que vem da vida vivida. A diferença está justo no fato de tais constatações doerem menos do que quando se é tão leviano em face ao viver; talvez, como diria Balzac, antes da idade da razão, ou como alguém que não me recordo o nome já disse: só deixamos de ser cretinos depois dos trinta, na acepção mais Aureliana do adjetivo ácido.

Pois bem, é nesta leva, neste tal momento da vida, que passamos a sofrer menos por exemplo com a troca de uma potencial e promissora carreira de qualquer coisa que seja por aquela outra que foi mais viável circunstancialmente, e que nem por isto deixa de nos trazer alegrias possíveis; ou que aprendemos a nos angustiar menos com os projetos todos – pessoais e profissionais – que mais correram rebeldes à revelia das contingências do que sobre o nosso domínio absoluto, ou seja, nem sempre perfeitos, nem sempre completamente conclusos.

Em contrapartida, aprendemos a renegociar as possibilidades, e aprendemos às custas de desilusões, desencontros, embaraços, até porque a incompletude – e já disse isto por aqui – é o que nos move, isto é, a satisfação plena não deixa de ser uma espécie de morte. No mais, o que é bonito da vida mesmo é que tudo, absolutamente tudo – desde as mais amargas experiências – vira aprendizagem, traz a doçura da aprendizagem, aquele gosto manso, aquele gosto bom de choro consolado. E aprender é sempre muito bom.

Das abstrações à vida prática, e é a partir deste tal momento revelador, é que nos convencemos sem tanta dor que a monografia poderia ter saído melhor do que foi; que o carro do ano fica para a próxima; que no novo cargo há mais percalços do que o imaginado; que o amor da vida é um ser humano, com eventuais humores e odores, e não exatamente uma entidade encantada, um Apolo, um elfo; que a festa de casamento será tão feliz se na choupana ou se no Taj Mahal, daí vai sempre mais dos valores do que dos custos, como se diz por aí. E, finalmente, nem todo mundo será um Shakespeare, um Einstein ou um Niemeyer, aliás, raras são as pessoas que serão tão fulgurantes assim. Entretanto, emociona muito ver a pessoa comum – o que de forma alguma exclui a singularidade que cada um traz, e isto é tão bonito do viver – vê-la então em sua trajetória de vida, levantando e construindo os seus possíveis com dignidade e grandeza. Daí é o funcionário público que se esmera para cumprir com excelência a sua função e em serviço do outro; é o professor que lapida vidas dia a dia, palavra a palavra bem escolhidas; é a doméstica, o operário civil, o corretor de imóveis, o artista de rua, o cientista, a presidenta da república.

Dia desses mesmo, eu me emocionava muito com a administradora de um antigo edifício comercial, desses impregnados de velhas histórias e novos anseios, que fazia das tripas coração para salvá-lo da completa decadência, da falência total. Foi preciso minimamente reconhecê-la – como clama todo ser humano no exercício diário do seu viver. Melhor, foi preciso elogiá-la intensamente no tanto de doação de existência que ela vertia ali dia a dia, minuto a minuto, gota de sangue, gota de suor. Daí compreendi que o sublime, o divino, o poético não está apenas nos versos e na prosa, mas está também no mais dos concretos e burocráticos afazeres, nos pequenos e grandes feitos que fazem da vida vida. Ou como diria Álvaro de Campos: o binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo; o que há é pouca gente para dar por isso.

Fato: nem todo mundo será meteórico como Shakespeare, como Chico Buarque, Patativa do Assaré. Todavia, como disse Nelson Rodrigues: qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea. Todo mundo deveria considerar isto para não permitir que se morra por qualquer bala perdida, por falta de hospital, por exemplo; ou, estando vivo, para mesmo não se passar efêmero e indiferente à vida, assim estrela cadente. 


Ana Clara Rebouças